FOGO NOS GRILHÕES
Por Arthur Dapieve
O trabalho de Luís Nenung está para a esmagadora maioria da música pop que se ouve(?) hoje em dia no Brasil e no mundo como a slow food está para a fast food. Demanda não apenas uma velocidade diferente de fruição, mas uma relação inteiramente distinta com a música. É assim na “nave-mãe”, Os The Darma Lóvers, é assim no Projeto Dragão, cujo primeiro trabalho nasce agora, depois de três anos de gestação, com o álbum – e talvez eu devesse grafar ÁLBUM – Serenoato.
Por que ÁLBUM? Nenung me ajuda a explicar. “É um disco completo”, diz. “Faz mais sentido sendo ouvido todo (eu recomendaria no escuro) e não sendo de forma alguma uma sequência de jingles singles como tooodo mundo insiste em enfatizar a respeito da música que larga por aí. Não tou pra fazer singles nem jingles, quero compadrilhar.” As faixas se interligam, tanto na forma – tipo a chuva que começa em A tempestade e avança sobre A cada novo adeus – quanto no conceito: uma maratona aquática contra a corrente contemporânea do materialismo emocional.
Aliás, as faixas de Serenoato se interligam também com o trabalho de Nenung com Irínia, nos The Darma Lóvers. A principal diferença é que o duo dos gaúchos – que criou um culto fidelíssimo também no eixo Rio-São Paulo – pode ser classificado como folk-rock enquanto Nenung e o Projeto Dragão são, definitivamente, uma banda de rock. Uma banda de proporções pink-zeppelianas, eu diria. Além de Nenung e de seus vocais mezzo serenos mezzo desesperados, fazem parte dessa big band Maurício “Fuzzo” Chaise (guitarra), Thiago Heinrich (baixo e teclado), Rafael Bohrer (bateria) e Gustavo Chaise (guitarras e violões). Tocam furiosamente.
A principal semelhança entre o Projeto Dragão e os The Darma Lóvers está, naturalmente, na alta qualidade das letras de Nenung, perpassadas pelos ensinamentos do budismo. Num panorama onde a regra é ser tatibitate, ele tem o que dizer e sabe como dizê-lo, seja com indignação seja com poesia. Que tal “Na imensidão da manhã/ Meu amor se mudou pra Lua/ Eu quis te ter como sou/ Mas nem por isso ser sua”? Familiar? Claro. Meu amor se mudou para a Lua brilhava em Só Nós, disco solo que Paula Toller lançou em 2007. Se lá ouvia-se uma balada soul, em Serenoato a música ressurge como um baladão roqueiro, que conta com vocais da argentina Vika Mora.
Não é só a Paula Toller, do Kid Abelha. Todo o pessoal dos anos 80, acostumado a trabalhar com grandes letristas, reconhece em Nenung um dos bons. Em O Passo do Colapso (2012), de Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana, cinco das 12 músicas tinham Nenung como autor ou co-autor. Em Serenoato, a faixa-título, Dado toca uma prima chinesa da harpa. Moreno Veloso toca violoncelo em A cada novo adeus. Outra argentina, Alejandra Estepa, mais conhecida como Anamoli, canta com Nenung em Houve um tempo. E uma cantora-compositora revelação de Porto Alegre, Carmen Corrêa, participa de Poeta e de O navegador. Isto para citar apenas alguns dos que colaboraram em Serenoato. Assim como nos discos dos The Darma Lóvers, o espírito da produção – feita e mixada por Edo Portugal – foi comunitário.
Comunitária é também a mensagem. Pegue-se, por exemplo, três músicas separadas no álbum, mas unidas no conceito, a raivosa Quem serve a quem, a enojada Maque dia feliz (olha a menção à fast food aí) e a sombria Bebê baleia, dos versos “não chore, bebê baleia/ Sua mãe já vai voltar/ Se os homens que saíram para a pesca/ Não conseguirem lhe pegar”.
É uma terrível canção de ninar. As três expressam um mesmo mal-estar, seja diante das forças de segurança do Estado, do consumismo alimentar ou da matança de outros habitantes do planeta. Faz sentido essa minha leitura? “Olhando daqui é uma sequência de provocações e questionamentos vestidos com poesia, procurando debater a adulteração da palavra e a manipulação da realidade dos fatos com fins egoístas”, avalia Nenung, fã de Who e Clash. “A ignorância monitorada.” Se é assim, o Projeto Dragão cospe fogo para derreter nossos grilhões.
Nenung + Gustavo Chaise + Maurício Chaise + Rafael Bohrer + Th Heinrich